sexta-feira, 22 de abril de 2005

Eu vi a cara da morte e ela estava viva


Setembro de 2003. Saí depois das 23h do campus porque o filme passado na aula de Introdução à Literatura era grande. Tô atravessando a SQN 405. De longe, avistei um cachorro branco. Não era um vira-lata qualquer. Era a porra dum pitbull. Ele ficava pulando e dando voltas, soltinho, observado de longe pelo seu dono. De onde estava, aquela coisa branca já havia me avistado. Olhava, encarava-me várias vezes momentaneamente, mas logo em seguida fez como se houvesse me ignorado. Foi a deixa pra que eu traçasse uma rota paralela e não ficasse na reta dele. Não adiantou. Ele continuava pulando, dando voltas e observado pelo dono, mas foi se aproximando. Olhei pra outro lado, fingi que não estava nem aí, mas não teve jeito. Ao passar por uma distância de dez metros dele, virei apenas os olhos rapidamente pra ver se estava me encarando...




Estava.




Aquele olhar durou toda a eternidade.




Se o diabo existe, ele esteve ali, diante de mim. Lúcifer, Belzebu, Satanás... o olhar fixo daquele cachorro branco imóvel me hiptonizava e me dizia:

- Boa noite, desgraçado. Vim buscar sua alma.

Pensei que não tivesse mais que alguns segundos de vida. Não tenho nada contra morrer, pode ser hoje, pode ser mês que vem; acredito até na imortalidade da alma. O foda é ter que morrer dolorosamente, sofrer intensa e demoradamente antes do último suspiro. Nesse momento o dono parece ter se tocado e resolve chamá-lo: "Vem pra cá, Rex, volta!" (digo "Rex" porque a emoção do momento me impediu permanentemente de lembrar do nome do demônio). Mas ele continuou em meu encalço. Apesar de tudo, não deixei que a emoção mais terminal que já tive na vida tomasse o lugar da razão. Lembrei-me do que li certa vez em uma revista sobre como proceder ao ser abordado por um pitbull: diminua a velocidade do seu andar até parar. Abaixe a cabeça e não olhe mais pra ele, porque ele encara isso como um desafio e parte pro ataque logo em seguida. Vire-se vagarosamente na direção contrária e continue caminhando vagarosamente. Fiz tudo conforme recomendava a revista, e parecia que estava dando certo. Exceto por um detalhe: ele continuava a me seguir, vagarosamente... e rosnando. Baixinho. Era também um rosnado incisivo, que dizia: "Quero sua alma, AGORA, e nada nesse mundo (nem mesmo o meu dono que tá ali me chamando) me fará desistir de você, maldito que cruzou meu caminho". Minha alma nada, ele queria era o meu corpo, minha carne, meus ossos. Continuei andando, suando frio e calculando quantos segundos ainda faltava pra pensar/fazeralgumacoisa/rezar/gritarporsocorro até que estivesse finalmente despedaçado. Finalmente, não ouço mais rosnado algum. Mas só tive coragem de olhar pra trás após mais de 100 metros percorridos. Na verdade, nem me lembro de ter olhado pra trás até chegar em casa. A qualquer momento, ele soltaria o rosnado seguido do latido definitivo, antes de chegar até minha jugular. Mas não o fez. Já devia estar era longe, recolhido no apartamento com seu dono.

Acredite: uma leitura de revista na barbearia antes do corte de cabelo pode salvar sua vida. Ou pelo menos fazê-la durar mais um pouquinho até algum próximo encontro inevitável.

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