segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Não amarás

Lana era mais conhecida pela porra-loquice do que pelo nome. Não era preciso intimidade alguma pra que se desvendasse sua intensa vida social, ora movida a tuntistun-tuntistun, ora a forró, o que tocasse primeiro. Fácil é reconhecer uma nativa de gêmeos: conhecia meio mundo, mas parecia um enigma para a outra metade das pessoas. Um misto de atração e desconfiança era sentido pelos caras que por ela se interessavam. E não eram poucos: seus olhos verdes, a bela voz onipresente, o jeitinho sociável e rápido em fazer amigos não permitiam a qualquer um ficar indiferente por muito tempo. Bastava Lana pôr os pés pra fora de casa pra que os flertes tivessem início; flertes que aconteciam de modo tão espontâneo que nem pareciam algo intencional.

Mas dia desses, nem precisou pôr os pés pra fora. Ao arrumar-se para sair, bastou abrir a janela pra que encontrasse alguém singular. Logo ali na calçada. A troca de olhares, embora distante, permitiu uma hipnose recíproca e suficiente. De um lado o coração da geminiana batia pela enésima vez por mais um carinha. Do outro, pulsavam as emoções de Duda, um adolescente de beleza discreta, erudito e sensível. Não era exatamente tímido, mas apenas sem a audácia típica dos homens-galinha. Agora sim já era hora de pôr os pés pra fora. Terminando de se arrumar, ela sai decididamente em direção ao ponto de ônibus, como quem no fundo aguardasse incerta pelos passos de seu ocasional pretendente a segui-la. Deu certo. Ambos param num ponto de ônibus. E tem início o inevitável entrosamento, provocado por Lana, claro. A lábia da menina o seduzia ao mesmo tempo que a erudição do rapaz a cativava. Ao descer do ônibus, Duda já contava com o telefone, por meio do qual pegaria o messenger dela, seguido do perfil no Orkut. Nascia assim pelo meio virtual a ilusão movida a megabytes. As promessas de encontro via e-mails manteriam o carente Duda interessado e submisso aos caprichos de Lana.

Duda era um grande iniciado da vida acadêmica, mas inexperiente em assuntos do coração. Um jovem nerd solitário – diriam os mais venenosos. Não era nenhum deus grego, mas suas doces feições, aliadas a uma expressão de legítima intelectualidade, despertaram em Lana aquele tesão diferente que ela nunca tinha sentido antes por outro rapaz. Naquele momento ela não podia imaginar o quão momentâneo era seu interesse por ele.

Chegaram a se encontrar mais uma vez, quando a troca de um carinho discreto se fez inevitável. Mas não saíram disso. Tudo tendia para um indesejado clima de amizade, enquanto Duda não via a hora de tocar aqueles lábios. Maldito foi o dia em que Duda conheceu Lana. O cenário da ilusão estava montado, com destaque para um ator involuntário.

A terceira pessoa não tardaria para aparecer. Para a vida sempre em movimento da geminiana, encontrar Tony foi apenas uma questão de tempo. Teria o admirado antes, dançando perto dela naquela boate de sexta passada; mas foi na outra quinta no bar ali perto à faculdade que ela o encarou sentado a algumas mesas de distância. Tony não perdeu tempo. Diante da troca incessante de olhares, estendeu sua tulipa cheinha de chopp de forma a propor um brinde. Após alguns minutos, ambos já se sentavam à mesma mesa, criando vários motivos pra prolongar um longo papo, noite brasiliense adentro.

Sem dúvida, Tony não precisava se esforçar pra se mostrar interessante: seus atributos físicos o promoviam à condição de deus grego da cidade satélite. Sua altura e massa muscular chamavam a atenção do público feminino por onde quer que desfilasse. A falta de cultura era compensada por uma lábia tão convincente quanto a de Lana. Foi o encontro da sedução com a conquista.

Os dias se passaram, e Duda percebeu pela tela de seu computador conectado 24 horas à internet o distanciamento, lento e gradual, do seu grande amor virtual. Sim, virtual, embora tivessem se conhecido e encontrado fisicamente. E foi por meio dos sites de relacionamento que ele mapearia a agenda social dela, mais para descobrir algo que temia do que tentar forçar um encontro. Foi uma noite dolorosa. Constatou o que era preciso. Logo logo ele se convenceria de tudo aquilo que não conseguia admitir antes, graças à ilusão que abraçou: a vida rotativa de Lana não permitia a relação estática de um romance a dois. Ainda mais com um parceiro que lhe tomasse a liberdade dos encontros. Precisava estar sempre em busca do mais atraente, do mais completo, do mais belo. E quase sempre encontrava o que buscava. E se deleitava.

Para Duda, era tudo o que precisava saber sobre o amor. Não tentou aprender mais. Não se sabe se experimentou mais dores e desilusões antes de Lana, mas a lição que ela lhe proporcionou parecia ser definitiva. Lição que ele fez questão de retribuir com um poema, enviado, claro, por e-mail, num momento em que ela nem fazia mais questão de aguardar por suas mensagens. Ali, ele parecia descrever toda a trajetória de um amor nascido frustrado:

Ainda que seja tarde
[Duda Salles]

Foi numa tarde inesperada
Como surpresa de criança:
Alguém de alma abençoada
Apareceu na minha andança.

O esverdeado olhar
À tentação nos faz ceder
Essa voz tão singular
Todo poema devia ler.

A simpatia genuína
A risada que encena
É presença que fascina
Faz o dia valer a pena.

O toque, o abraço
Pude logo sentir
O jeitinho, sem embaraço
Tudo vem me seduzir.

Tarde tão bela assim
Nunca tinha vivido
Que fizesse por mim
Instante tão colorido.

Mas esse instante risonho
De repente foi embora:
Naquele belo sonho
Me acordaram antes da hora.

Outra noite, cheia de vida
Queria sempre dançar
Mas que barreira indevida!
Comigo não faria par.

Na companhia de um estranho
Entrega-se à dança com alegria;
Seu olhar e sorriso tamanho
Completam a bela coreografia.

Você no colo de outro a se pôr
Não me trouxe nenhuma dor
Duro foi não ter mesma chance
Que outro logo teve ao alcance.

Quando me fiz ausente
Foi pra não importuná-la:
Não por ser indiferente
Livre pra amar queria deixá-la.

Coragem busquei
Para a verdade mostrá-la:
Sempre a desejei
Mas sem graça temia deixá-la.

Ainda assim era preciso
Fazê-la ver meu desejo
Um poema curto, conciso
Que valesse ao menos um beijo.

Mas curto o poema não queria
Por Lana, eu rimava toda vida
Um momento com ela esperaria
Antes da inevitável despedida.

Como o convite não foi aceito
Desgostoso hei sofrido
Mas fique certa que em meu peito
O carinho teria permanecido.


Ao fim dos versos, seus olhos ensaiavam um lacrimejamento discreto. Como se experimentasse um remorso, e em respeito a isso, parou e silenciou por alguns instantes. Até que seu celular tocasse novamente, e o convite de Tony pra se encontrarem de novo a fizesse virar a página daqueles tristes e irrecuperáveis versos. Após isso, nunca mais trocariam uma única mensagem sequer. Lana não o responderia, nem ele outras mensagens enviaria. Perderam-se todos os contatos via internet. Teria morrido, se suicidado ou apenas desistido? Descanse em paz, Duda. Viva e deixe viver. Entre o carinho e a companhia do poeta e o tesão de estar sempre à procura do mais belo, Lana optou pela poesia das boates e a prosa dos bares.