domingo, 29 de janeiro de 2017

A voz que vinha do quarto vazio

Something strange happened here, that's for sure, but I can't find enough evidence to venture a guess. (“Manitou”, Dennis Holt)
Em princípios de 2001, quando me mudei para a Asa Norte, passei a ter como vizinha, no apartamento de cima, uma idosa agitada e desmemoriada, de olhar perdido, que parecia viver mais noutro mundo do que neste. Era ocasionalmente visitada pela filha, que, segundo o zelador, já havia perdido por completo a paciência de lidar diariamente com a mãe, dotada duma inquietação incessante. Passou então o fardo das perturbações a uma acompanhante, uma balzaquiana mal-encarada, que cuidava dela em tempo integral.
Por razões que só a caducidade pode explicar, de vez em quando a vizinha de cima costumava jogar, da janela de seu quarto (que ficava exatamente sobre o meu), várias coisas — velas, fotos de pessoas, plantas, raízes, papéis escritos com garranchos ilegíveis, bijuterias, pedras cristalinas etc. —, algumas das quais às vezes resvalava ou batia no vidro da minha janela, quando não caía diretamente lá no térreo. Demorei a entender o que acontecia até ser esclarecido pelo zelador, que era tentado a colecionar quase tudo o que vinha daquela janela do 3º e último andar.
Vivia a velhinha numa alienação de dar dó. Sempre que a porta do seu apartamento era deixada aberta, fugia sorrateiramente e circulava pelos arredores do bloco ou pelo seu interior, chegando às vezes até a tentar entrar em outro domicílio, crente que fosse o seu. Tanto que, por várias vezes que eu estava prestes a entrar ou sair de casa, era surpreendido por suas tentativas de invasão, ocasiões em que insistia, indignada: "Ei, me deixa entrar!...". Até que a cuidadora ranzinza aparecesse, era preciso muita paciência e compaixão. Todavia, tais ataques de decrepitude eram o que menos me incomodava. Pelo menos uma vez por semana, nas madrugadas, ouviam-se estranhos arrastos de móveis e ruídos de riscados feitos com algum objeto sobre o chão sobre o teto do meu quarto. Eu os ouvia por estar ainda acordado, ou acordava ouvindo os sons. E digo "estranhos" justamente porque não faziam sentido algum: as coisas iam e voltavam sem parar, em movimentos ora ordenados, ora caóticos. Quando não se arrastava nada pelo chão, algo parecia bater ou riscar intensamente tanto o chão quanto as paredes do quarto de cima. Nunca conversei com sua acompanhante a respeito: primeiro, por falta de proximidade e por achar que de nada adiantaria; segundo, por seu jeito antipático e difícil, cara de poucos amigos. Talvez aquela cuidadora, fria e rabugenta do jeito que era, simplesmente trancasse a senhora no quarto e passasse a noite inteira na sala vendo TV, tentando ignorá-la o quanto fosse possível. Bem, antes fosse esse o único mistério a me encucar nas horas mortas. Posteriormente, no início de algumas madrugadas, meus estranhamentos tomariam maiores proporções, pois passei a ouvir, oriundas da janela de cima, palavras incógnitas, que não me remetiam a nenhuma língua estrangeira que já tivesse ouvido, pronunciadas de modo intenso e vagaroso por aquela voz decrépita, entoadas com um horror indescritível, capaz de deixar cismado e arrepiado o mais indiferente, cético e insensível dentre aqueles que conheço. Não, não se tratava de fraseado solto de bêbados e tampouco de falas caóticas de doentes mentais. Sei lá em que língua aquilo estava sendo dito, mas soava como um tipo de conjuração ou invocação — e, a julgar pelo tom, com o propósito mais perverso possível. Nesses momentos, criava-se uma atmosfera tão intimidadora nos arredores que até as corujas e outras aves que habitavam a área silenciavam seus cantos norturnos. Agora, parecia-me improvável que tudo aquilo se passasse despercebido por quem estivesse naquela casa; comecei a desconfiar então de que aquela intratável acompanhante, em vez de ignorar, participava de algum modo daquelas atividades ruidosas e esquisitas. Ao ouvir, altas horas, aquela mensagem enigmática, mas de vibrações claramente negativas, meu frio coração gelava ainda mais, certo de que eventos perturbadores estavam em ação naquele quarto. De qualquer forma, ao meu medo se associava uma enorme curiosidade. Certa noite me enfiei no pequeno bosque situado em frente ao bloco para tentar observar os movimentos daquela casa por suas janelas. Notei que, a partir do momento em que o ritual de estranhosidades costumava se iniciar, todas as lâmpadas da casa estavam sempre apagadas, embora se notasse uma luz instável vinda de dentro do quarto logo acima do meu, certamente oriunda de velas... talvez muitas velas. Não consegui vislumbrar ali nada além de sombras projetadas, mas sentia arrepios toda vez que aquela silhueta senil se debruçava sobre a janela, dando a impressão de que me enxergava ali entre as árvores. Entretanto, tais vislumbres do quarto sinistro não me intrigavam mais do que aquele palavreado diabólico. Rapidamente tive a ideia de gravar a voz a fim de submetê-la à apreciação de um distante contato ucraniano, linguista de formação e modesto hiperpoliglota, que eu havia conhecido por meio de um grupo de esperanto na Internet e que despertaria meu interesse em cursar Letras na universidade. Nunca interagi muito com esperantistas de outros países, por não ter sequer concluído o nível básico da língua artificial; mas Andreiv conversava muito bem em tudo quanto era língua. Não conhecia mais ninguém tão capaz de identificar e decifrar aquele horror verbal. Enviei-lhe por e-mail a gravação num formato de arquivo de áudio, dizendo não haver urgência e que ele poderia levar todo o tempo necessário para me dar uma resposta. Andreiv logo acusou o recebimento da mensagem e não demorou mais do que uma semana para me dar um retorno. Eis a mensagem, num português formidável para um estrangeiro e com alguns usos em esperanto: ----- Mensagem original ---- De: Andreiv H. <andreiv...@mail.lviv.ua> Para: mim Enviada: Sábado, 3 de agosto de 2001 21:07:17 Assunto: Re: Arquivo de áudio (língua desconhecida) Kara amiko Davido, Fiquei muito entusiasmado e curioso com a gravação que você me enviou. Confesso que não houve um único dia, desde que a recebi e a ouvi, que eu não lhe dedicasse ao menos algumas horas analisando o seu achado. À parte os aspectos perturbadores da voz, já lhe adianto que, de fato, seus palpites não estavam equivocados e sua intuição não o enganou: não se trata de balbucios aleatórios. Há estrutura, ordem, conexão e combinação de terminações e de sons. Notei traços bem peculiares, normalmente não encontrados em outras formas de expressão oral. De início, até especulei a possibilidade de estarmos diante de algum falar arcaico – preservado sabe-se lá como e por quê – de algum idioma conhecido. Mas não consegui perceber nenhuma proximidade, nenhuma ligação genética entre essa linguagem e qualquer outra já identificada. É diferente de qualquer língua ou dialeto que eu já tenha conhecido, ainda que superficialmente. Não consegui ver parentescos, e arriscaria dizer que, de onde quer que isso tenha se originado, não pertence a nenhuma família ou tronco linguístico já documentados. Tudo o que posso lhe afirmar, até o momento, é que provavelmente tivemos o privilégio de encontrar uma língua isolada, sem parentesco com qualquer outra conhecida, o que não seria nenhum absurdo, considerando ser esse também o caso de vários idiomas indígenas da Amazônia, como o trumai e o pirahã. Mas reconheço que é algo, no mínimo, curiosíssimo, e isso sem considerar a circunstância um tanto assustadora por meio da qual você a gravou. Está sendo sem dúvida uma oportunidade fascinante de investigação, já que você tem dificuldade de questionar isso pessoalmente. Continuemos pesquisando. Não desistirei desse achado. Caso ouça outras falas, não hesite em me enviar.
Kore kaj amike, Andreiv H. ----- Fim da Mensagem ----
Frustrado e ao mesmo tempo intrigado com o resultado, gravei e enviei mais algumas vezes aqueles dizeres insondáveis, mas sem retornos esclarecedores, o que me fazia sentir mais pena do prestativo e dedicado linguista do que insatisfação. Todas aquelas bizarrices seriam testemunhadas com regularidade semanal, e eu jamais me acostumaria a elas. Em momentos assim, só me restava então fechar a janela e tentar dormir... algumas vezes, o mais distante que podia: na sala. Paralelamente a isso, eu começava a estranhar o fato de não mais encontrar pessoalmente a velhinha, nem pelos corredores, nem pelos arredores do bloco. Talvez sua saúde tivesse piorado a ponto de limitar sua locomoção, embora continuasse em intensa e obscura atividade dentro de seu quarto. Curiosíssimo, aproveitei ter me esbarrado com o zelador para puxar conversa, perguntando se ele sabia alguma coisa sobre a senhora que eu já não via há muito tempo. E o que ele me respondeu a seguir será para sempre lembrado por mim com muito assombro: “Mas rapaiz, cê num ficou sabendo, não? A veinha do 308 faleceu faz tempo, moço... cê num notô que parô de cair as coisa lá de cima? Então... A filha ficou de alugar, mas té agora nada... té apareceu gente interessada aí, mas, depois de ver, ninguém quis alugar...” Esbocei expressão de leve surpresa, enquanto por dentro estava apavorado com o que tinha acabado de ouvir. E me retirei pensando no quanto aqueles fatos mostravam-se, agora, mais inexplicáveis e sinistros do que já eram. Os ruídos de arrastos e de riscos no chão sobre o meu teto. Os resvalos e as batidas de objetos em minha janela. Todas aquelas palavras indecifráveis pronunciadas por aquela voz decrépita. Há quanto tempo eu vinha testemunhando tudo isso desde que ela faleceu? A partir daquele dia, passei a dormir somente na sala e rezei para não mais presenciar o evento semanal — cuja natureza eu agora sabia ser exclusivamente fantasmagórica — até alugar outro apartamento, o que não levou mais que alguns dias. À exceção das lembranças, eu podia ou queria acreditar que tudo aquilo havia ficado para trás. Posteriormente, ao passar rapidamente pelo bloco e questionar o zelador, fui informado de que o apartamento da falecida nunca fora alugado até então. Quanto ao Andreiv, o tempo fez com que perdêssemos contato. Minha última mensagem foi respondida automaticamente, informando inexistência daquele endereço de e-mail. Teria se aprofundado a ponto de ter feito algum avanço a respeito do assunto? Talvez jamais saiba, pois, ao entrar em contato com aquele antigo círculo virtual de esperantistas, o qual ele também não mais frequentava, disseram-me que a última notícia que tinham era de que ele havia interrompido suas atividades profissionais e se recolhido em lar de parentes após ser acometido de perturbadoras alucinações auditivas. Naquela hora, passou-me uma horrível possibilidade pela cabeça. Estaria isso relacionado à demasiada atenção que ele deu àquelas invocações? Teria eu então me livrado de destino semelhante ao me retirar daquela casa, interrompendo o convívio com aquela terrível audição? Senti-me durante algum tempo condenado a conviver com essa culpa, embora não comprovada. O fato é que excluí do computador e do e-mail todos aqueles horríveis áudios gravados, dando o assunto por encerrado e nada mais especulando. Dei graças aos céus por nunca mais ter escutado nada à noite e desapeguei-me completamente das dúvidas que alimentara durante muito tempo. Hoje distante, no tempo e no espaço de tudo aquilo, consigo apenas admitir com serenidade que, naquelas noites passadas em claro, eu ouvia a voz que vinha do quarto vazio.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Alguns achismos sobre transliteração de nomes russos



Originalmente, nós, falantes nativos de português,  herdávamos diretamente a transliteração inglesa dos nomes russos (Dostoyevsky, Vygotsky etc.), isto é, a transliteração que se fazia do russo diretamente para o inglês, sem desenvolvermos uma própria. Com o tempo, passou-se a fazer uma transliteração mais nossa, devidamente aportuguesada (Dostoiévski, Vigotski), mas, em vez de substituirmos as formas anteriores, passamos a conviver com todas elas, antigas e mais modernas (talvez em razão da falta de critérios e mesmo de uma normatização para esses casos). Daí esse caos e toda essa falta de padronização na grafia de nomes russos em diferentes publicações em português.


Vejamos um exemplo ainda mais caótico: a transliteração do nome russo Лев Толстой resultou em Leo Tolstoy (inglês), León Tolstói (espanhol) Léon Tolstoï (francês), Lev Tolstoj (italiano) e Lew Tolstoi (alemão); já em português, a transliteração não seguiu um determinado critério, rendendo variações como Liev Tolstói, Lev Tolstói, Lev Tolstoy, Leon Tolstói etc.



Como se vê, o prenome de Tolstói em português herdou transliterações a partir de diferentes línguas, do inglês (Lev, Leo) ao francês (Léon). Os portugueses fizeram sua própria transliteração (Leão), que foi muito seguida em fins do século XIX e início do XX também aqui no Brasil (e, pelo visto, parece que os eruditos brasileiros adoravam imitar não só a sintaxe como também as traduções de nomes feitas em Portugal). Por aqui, ainda reina a anarquia gráfica... A editora em que eu trabalhava já lançou o prenome desse escritor de várias formas, em diferentes épocas. E não deve ser um caso isolado.



Numa conversa, um amigo revisor me questionou: Tá... mas e aí? O que fazer?” Eu apresentei um problema sem querer determinar uma solução. Mas acredito que essa transliteração baseada no português (como em Vigotski, Dostoievski) já seja meio caminho andado. Para casos historicamente complexos, como a grafia multifacetada de Лев (Lev, Liev, Leon, Leão), faz sentido, a meu ver, adotar o critério fonético, optando-se pela grafia mais próxima da pronúncia original em russo (que parece oscilar entre Lev e Liev):

 https://www.youtube.com/watch?v=Is6K3Ibqju0.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Quem mexeu no meu hífen?


O primeiro registro lexicográfico de pé-de-moleque com hifens
(Diccionario brazileiro da lingua portugueza, Antonio Joaquim de Macedo Soares, 1889).


De 8 a 14 de outubro de 1990, em Lisboa, os representantes dos sete países que haviam assinado o acordo de 1986 no Brasil ratificaram suas posições [...]. No caso do hífen, os países adotariam as complicadas regras que já eram motivo de piadas no Brasil, como a mudança de contra-senso para contrassenso e auto-retrato para autorretrato, em que um traço é substituído por uma letra adicional. Nas exceções consagradas pelo uso, a água-de-colônia continuaria com seus dois hifens, mas o pé-de-moleque ficaria sem os seus, gerando dúvidas sobre o critério utilizado pelos acadêmicos para definir a expressão consagrada pelo uso. Vendidas no Brasil desde o século XIX, as águas de Colônia nunca haviam portado hifens, nem nos rótulos, nem nas menções da imprensa, enquanto pé-de-moleque, duplamente hifenizado, já era registrado desde 1878 em jornais, e 112 anos de uso pareciam ser um período mais que suficiente para uma consagração.


(GEHRINGER, Max. Quem mexeu no meu trema?. São Paulo: E-Galáxia, 2014. p. 105-106)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

O dia em que o gramático quis enforcar o revisor

O gramático Napoleão Mendes de Almeida em seu escritório no centro de São Paulo (1993) - Arquivo FSP



Contou-me Napoleão Mendes de Almeida que, por ordem expressa de Júlio de Mesquita Filho, diretor de O Estado de S. Paulo, não se usava no jornal o substantivo fracasso – italianismo que, segundo o chefe, devia ser substituído por sinônimos de etimologia portuguesa, como malogro. Napoleão mantinha, no jornal dos Mesquitas, a coluna Questões vernáculas, em que respondia a perguntas dos leitores. Um deles, mais atento, indagou por que, n'O Estado, não se lia o termo fracasso, de uso tão frequente. O professor escreveu a resposta:


Sempre que possível, convém escoimar o texto de estrangeirismos como fracasso. Dispomos, em português, do correspondente malogro, que equivale à perfeição ao italianismo a que se refere o prezado leitor. Agora perguntamos: se temos, em nosso idioma, palavras de tão legítima formação, como malogro, por que dar preferência ao exótico fracasso quando podemos, em muito melhor português, substituí-lo pelo vernáculo malogro?

Ao receber os originais da coluna, o obediente revisor não teve dúvidas: onde havia fracasso, punha uma emenda para que se lesse malogro... A coluna virou, assim, um verdadeiro samba do crioulo doido:

Sempre que possível, convém escoimar o texto de estrangeirismos como malogro. Dispomos, em português, do correspondente malogro, que equivale à perfeição ao italianismo a que se refere o prezado leitor. Agora perguntamos: se temos, em nosso idioma, palavras de tão legítima formação, como malogro, por que dar preferência ao exótico malogro quando podemos, em muito melhor português, substituí-lo pelo vernáculo malogro?

O professor Napoleão quase morre de infarto: passou uma semana de cama, a pensar no sentimento que mais o consumia — se o desejo de estrangular o revisor ou a vergonha que sentia dos leitores...


(CAMINHA, Edmílson. Lutar com palavras. Diário do autor escrito no período de agosto de 1998 a dezembro de 2000. Brasília: Thesaurus, 2001, p. 147-148)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Falsas atribuições de autoria, parte XVIII

Atentado a bomba contra a sede da Civilização Brasileira, em 14 de outubro de 1968


A famigerada máxima “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê” é frequentemente atribuída, Internet afora, a Monteiro Lobato, Malba Tahan e Alfredo Maia. Alguns livros também fazem essas referências, todas elas equivocadas, e é bem provável que a qualquer momento inventem mais outras atribuições de autoria. Além de essas menções serem levianas ou até desonestas, contribuem para deixar no esquecimento um peculiar fato histórico envolvendo tal frase.

Ela é, na verdade, o slogan adotado* pelo editor Ênio Silveira (1925-1996) para a Civilização Brasileira, editora que ele dirigiu por décadas. Durante os anos 60, na fachada da sede da editora, localizada na rua Sete de Setembro (Rio de Janeiro, capital), ele mandou fixar um grande cartaz com esses dizeres, consagrados como o lema da casa.

Em 1968, dois meses antes do AI-5, um atentado a bomba na sede — que publicava autores de esquerda e servia como ponto de encontro de vários intelectuais — destruiu parcialmente essa fachada (foto), tendo o cartaz resistido ao 
terror cultural, expressão criada na época pelo escritor Tristão de Athayde e que chegou até mesmo a ser usada pelo então ditador Castelo Branco ao questionar seu chefe de gabinete militar, Ernesto Geisel, sobre a necessidade de (uma nova) prisão do grande editor, já então detido várias vezes durante seu governo.

Moral da história: Quem não consulta referências, mal sabe, mal cita, mal lê.



* Nenhuma das fontes consultadas afirma literalmente que tal lema tenha sido criado por ele mesmo, embora isso pareça possível, já que se tornou originalmente conhecida como slogan de sua editora.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O marquês do improviso

Dizem que Francisco Villela Barbosa (1769-1846), Marquês de Paranaguá, teria sido um dos nossos maiores poetas se a política não tomasse todo o seu tempo, deixando de consagrá-lo como um de nossos melhores improvisadores.

Poucos antes de morrer, ele jogou à fogueira preciosa coleção de poesias, de significativo valor literário. Um ou outro desses escritos e ligeiros improvisos, nunca publicados, chegaram a ser guardados por algumas pessoas.

Este trecho, retirado do artigo "Poetas repentistas", publicado no periódico Revista Popular (Rio de Janeiro) em 1862, relata a ocasião em que ele conheceu sua esposa, encantando-a de imediato com alguns versos improvisados:


domingo, 30 de agosto de 2015

Os assassinos do suicida: censura de livros durante a era Pinochet

O escritor chileno Gustavo Olate ficou preso
durante três meses em Villa Grimaldi

A ditadura de Pinochet desconfiava particularmente de livros e autores, sendo os confiscos comuns nas livrarias. Certa vez, o chefe de um destacamento militar ordenou o recolhimento de uma obra intitulada Cubismo. Ele tinha certeza de que aquilo tinha algo a ver com a Revolução Cubana...

Outra vítima foi o escritor Gustavo Olate. Ele havia publicado, em março de 1973, seis meses antes do golpe de Estado, um romance policial e de intriga psicológica chamado Los asesinos del suicida ("Os assassinos do suicida"). Após a morte de Salvador Allende no Palácio de La Moneda, morte que, segundo a tese oficial, foi causada por suicídio, o título dado com toda inocência ao livro por Olate tornou-se perigoso. O autor permaneceu detido por três meses até a confusão ser esclarecida, quando lhe informaram-lhe que a proibição continuaria a vigorar — a menos que ele mudasse o título da obra.

O falecido Erich Rosenrauch, austríaco de nascimento que viveu no Chile desde a tenra idade, publicou um romance em 1973 intitulado Muertos útiles. Todos os exemplares foram apreendidos, e Rosenrauch, cujos pais tinham emigrado para o Chile fugindo da perseguição nazista, foi preso. Soltaram-no quando os militares descobriram que o título do romance não tinha o significado presumido, mas o livro jamais foi liberado, e o manuscrito perdeu-se em consequência da apreensão durante as buscas na casa do autor.

(EDWARDS, Jorge. El libro, ese objeto peligroso. Cauce, Santiago, ano 1, n. 6, p. 24-25, jan./fev. 1984; MUÑOZ, Heraldo. A sombra do ditador: memórias políticas do Chile sob Pinochet. Rio de Janeiro: Zahar, 2010)


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Toninho Vernáculo, chefe da revisão



Algumas atividades entortam as pessoas. Umas entortam o corpo, como as pernas arqueadas dos caubóis, a corcunda dos alfaiates, os braços desiguais dos tenistas, os ombros dos nadadores, a lordose das bailarinas de tchan music. Outras atividades — como a de polícia, agente financeiro, jornalista — entortam a cabeça. Meu amigo era jornalista.

Era. Meio que pirou. Isto já é o meio da história, vamos ao começo. Era copidesque, do tempo em que o copidesque tinha poder nas redações: reescrevia, corrigia e titulava as matérias. Não possuía nenhum talento especial, a não ser a intimidade com a gramática. Nem era jornalista formado, havia parado no meio o curso de Direito, fascinado pela oportunidade de trabalhar na “cozinha da redação”. Refogava concordâncias, descascava solecismos.

Chamava-se Antônio. Por ser baixo virou Toninho. E pela devoção à gramática Toninho Vernáculo ficou sendo. Seu talento valeu-lhe uma promoção, de copidesque para chefe da revisão. Passou anos e anos corrigindo originais. Novas tecnologias invadiram as redações no final da década de 1980. Com os computadores, acabou-se a revisão. Ao leitor, as batatas.

Toninho Vernáculo foi deixado num canto, espécie de dicionário vivo. Recorriam a ele quando tinham preguiça de consultar o manual. Irritava-se. Então, meio que piorou. Achava que alguns tinham questões pessoais com a língua portuguesa, arranca-rabos com a sintaxe. Um não suportava a crase. Aquele tinha escaramuças com o infinitivo pessoal. Outro abominava a regência. Toninho não aguentou, aposentou-se.

Novos desafetos da língua passaram a provocá-lo pela televisão, em casa. O ator Antônio Fagundes vinha andando para a câmera e atacava o pleonasmo: “Há muitos anos atrás investi no boi gordo”. A repórter de feira dizia que “o” alface encareceu. Lula confiava “de que” o partido sairia fortalecido. O jingle publicitário apelava: “Vem” pra Caixa você também! Toninho brigou com a tevê:

— É venha! Venha você! Vem tu!

Uma ótica anunciava: faça “seu” óculos... Meu amigo largou a tevê, pegou o jornal: vendas “à” prazo. Sentia-se acuado, pessoalmente agredido. Um dia, lendo Monteiro Lobato, topou com o conto “o colocador de pronomes”, no qual o personagem sai pela cidade corrigindo pronomes malcolocados. Iluminou-se. Era um recado.

Hoje, Toninho Vernáculo é um dos dois ou três santos da ortografia que andam por São Paulo corrigindo o português nas placas das padarias, nos cardápios dos restaurantes populares, nos anúncios classificados dos jornais. Telefona para os anunciantes:

— Olha, vendas a prazo não tem crase. Não se usa antes de palavra masculina.

Telefona para as regionais da Prefeitura, exigindo a retirada do acento agudo de placas de ruas e praças: Traipu, Itapicuru, Pacaembu, Barra do Tibagi, Turiassu (“é com c cedilhado”, implora)... Centenas de casos. Há dias encontrei-o comprando tinta e escada. Anunciantes de cerveja não quiseram mudar um cartaz, tinham rido dele. É um advérbio em “mente” abreviado, disseram, significa redondamente, de modo redondo. Retrucou: por que não de maneira redonda? Outros opinaram: é locução, como “fala grosso”. Protestou: chuva cai fininha, sol nasce quadrado, lua nasce quadrada. Riram. Resmungou: fiquem com a sua opinião, eu fico com a minha. Ia partir para a guerrilha armado de tinta e pincel, atacar os painéis de madrugada:

— Uísque é que desce redondo. Cerveja desce redonda!



(ÂNGELO, Ivan. Guerrilha urbana. In: ______. Melhores crônicas de Ivan Ângelo. Seleção e prefácio Humberto Werneck. São Paulo: Global, 2007.)

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Festa da diversidade gramatical

10 de junho: Dia da Língua Portuguesa. O purista — que namorava a norma-padrão — chegou À festa, sentou-se À mesa e achou que não tinha DE beber nada, mas reclamou dos modos regenciais do linguista, que chegou NA festa, sentou-se NA mesa e estava namorando COM uma variante popular estigmatizada, berrando que tinha QUE beber todas.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Só pode ser culpa do revisor



Um jornal do Rio de Janeiro publicou, não há muito, na manchete, a locução adverbial “à beça, com cê-cedilha, como manda o figurino. O diretor foi à redação, reclamar do redator-chefe:

— O senhor viu a manchete?

— Vi.

— Quem é o responsável?

O redator-chefe chamou o editor:

— O senhor viu?

— Vi.

— Quem é o responsável?

O editor chamou o secretário:

— Viu?

— Vi.

— Quem é?

O secretário chamou o chefe do copidesque:

— Viu?

— Vi.

— Quem?

O chefe do copidesque chamou um sofredor de sua seção:

— Quem?

O reescrevedor chamou um repórter:

— Passei a notícia pelo telefone.

Assim, voltou do reescrevedor para o chefe do copidesque, deste para o secretário, para o editor, para o redator-chefe e para o diretor, a informação de que ninguém na redação era responsável. Em consequência, chamaram o chefe da revisão. E o diretor foi severo:

— O senhor viu “beça, com cê-cedilha, na manchete?

— Vi, sim, senhor. Vi em cima da hora. Se não chego a tempo, saía com dois esses...

O diretor perdeu o rebolado. Esperava tudo, menos aquela informação de que dois esses estariam errados. Mas não perdeu a dignidade de diretor:

— Espero que isso não se repita.

— Isso o quê?

—  O senhor ser forçado a trocar letras em cima da hora.

— Sim, senhor.


(HOLANDA, Nestor de. Ignorância ao alcance de todos: cartilha da analfabetização sem mestre. 6. ed. Rio de Janeiro: Letras & Artes, 1965)

terça-feira, 2 de junho de 2015

Falta de concordância

Ela era breve; ele, prolixo.
Ela lhe dava bjs abreviados; ele queria beijos por extenso.
Línguas diferentes, não trocavam palavras nem saliva.
Enfim o impasse foi aceito:
por ela, com ponto final;
por ele, com reticências...

sábado, 25 de abril de 2015

Os anus de Rubem Alves

Fotografia de Flávio Cruvinel Brandão (2007).

Revendo as correções que uma revisora fizera num texto meu, segundo o Aurélio, encontrei esta frase divertida: ... e os anus fazendo os barulhos que lhes são característicos.... Que é que você conclui? Que estou escrevendo sobre gases fétidos barulhentos expelidos pelo orifício terminal do intestino. Não é nada disso. Falo sobre barulhos que fazem as aves anús, palavra que, segundo o Aurélio, não tem acento. A palavra que tem acento, talvez por estar localizada no assento, é ânus... Por via das dúvidas, ponho acento agudo, no u dos anús. Não quero que pios de anús sejam confundidos com puns.

(ALVES, Rubem. Por uma educação romântica. 9. ed. São Paulo: Papirus, 2002)

segunda-feira, 20 de abril de 2015

A lei de Murphy e o hífen perdido

Se alguma coisa pode dar errado, dará. E mais: dará errado da pior maneira, no pior momento e de modo que cause o maior dano possível. 
Edward Aloysius Murphy Jr. (1918–1990)


Lançamento da sonda Mariner I (1962)
O desastre ocorrido com a primeira sonda interplanetária dos Estados Unidos foi extremamente oneroso e quase pôs um fim prematuro a toda a exploração espacial americana. A Mariner I havia sido derrubada pela falta de um hífen.

Quando a “corrida espacial” entre os Estados Unidos e a União Soviética começou, em fins da década de 50, o Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa (JPL) apresentou planos grandiosos para uma série de sofisticadas sondas espaciais, a serem denominadas Mariner. O lançamento dessas grandes sondas, contudo, dependia de um novo foguete mais poderoso, o Atlas-Centauro, cujo projeto mostrou-se problemático. O JPL, finalmente, teve de satisfazer-se com um desenho menos sofisticado, batizado, de início, Mariner Ranger, ou apenas Mariner R, que seria lançado pelos propulsores Atlas-Agena B, então disponíveis. O programa Mariner, mesmo assim, custou mais de US$ 500 milhões.

A Mariner I deveria ser a primeira espaçonave interplanetária destinada a explorar os planetas mais próximos, ou seja, Vênus, Mercúrio e Marte. A sonda não tripulada tinha asas com células para captação de energia durante a jornada e dispunha de instrumentos para estudar Vênus, o planeta almejado. Ela foi lançada em 22 de julho de 1962. Cerca de quatro minutos depois do disparo, contudo, o lançador executou uma manobra não programada e começou a desviar-se do curso. O oficial da Nasa incumbido da segurança tinha menos de um minuto para decidir entre interromper o lançamento (e destruir milhões de dólares em equipamento) ou permitir o prosseguimento do voo (e correr o risco de uma sonda espacial errante cair em área populosa ou em rota de navegação). A decisão foi de abortar a missão. 


Deu no NY Times...
Duas foram as causas do acidente, de acordo com a investigação subsequente da Nasa. Primeiro, ocorreu um problema com o sistema de orientação a rádio do foguete. Para essa eventualidade, porém, os planejadores da missão estavam preparados com um computador de orientação sobressalente que entraria em missão em caso de falha do sistema principal. Infelizmente, o programa do computador de orientação continha um erro minúsculo, mas fatídico. Faltava-lhe um único caractere, nada mais que um hífen. Em consequência do hífen perdido — possivelmente, um erro tipográfico, ou omissão do programador —, a espaçonave passou a fazer mudanças de curso desnecessárias. O hífen (indicando ajustamento estatístico) não foi incluído na expressão “R-dot-bar sub n” (“n” = valor ajustado da derivada de raio). O certo seria “R-dot-bar sub-n”. O erro levou o software a tratar pequenas variações normais de velocidade como alterações sérias, o que induziu o computador a promover automaticamente uma série de mudanças de curso, emitindo comandos de orientação impróprios, que afastaram a espaçonave do curso certo. O erro de programação não foi detectado nas verificações prévias, talvez por negligência decorrente do excesso de segurança, uma vez que o sistema de orientação a rádio nunca falhara durante os testes. Um relatório específico posterior explicou a ocorrência da seguinte forma:


“Não se sabe por quê, faltou um hífen no programa de orientação do computador de bordo, o que levou instruções falhas a comandar o foguete, desviando-o para a esquerda e para baixo... Basta dizer que a primeira tentativa de voo interplanetário dos Estados Unidos fracassou pela falta de um hífen.”

O veículo custou mais de US$ 80 milhões, o que levou o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke (1917–2008) a referir-se ao erro como “o hífen mais dispendioso da história”.


(WEIR, Stephen. A lei de Murphy e o hífen perdido. In: ______. As piores decisões da história. Rio de Janeiro: Sextante, 2014, p. 190-193)


Observação: A verdade é que a Nasa, o escritor Arthur Clarke e o New York Times cometeram um equívoco histórico (e que perdura até hoje, tanto que foi inconscientemente reproduzido pelo autor do livro cujo trecho é supracitado) na descrição do sinal ausente como hífen; trata-se de um traço sobrescrito, mais conhecido como overline ou superscript bar, usada na fórmula matemática em questão




Tal equívoco se consagrou e até as mais diversas e recentes publicações sobre o caso falam em hífen. Em suma: um erro em cima de outro erro, deixando o errado ainda mais errado.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

O revisor Baudelaire: Les erreurs du mal


Um livreto de 1848, que trazia um texto de Edgar Allan Poe traduzido por Baudelaire, foi destruído a pedido do tradutor por causa de um erro em seu nome. Na capa se lia “Beaudelaire”. Talvez esse evento tenha gerado uma preocupação incurável, quase enfermiça, de Baudelaire pelas erratas. Ele, descuidado com todas as suas coisas, tornou-se implacável. Corrigia pessoalmente. Mudava-se para perto da tipografia durante o período de edição de um algum de seus livros. Vigiava, pedia provas constantes. Depois do martírio desse afã de correção, a edição de As flores do mal saiu com erratas. Algumas perturbadoras, como a mudança do título de um poema, ou vie por ville. Essas erratas têm criado largas discussões entre os críticos e um elemento de imprecisão em certos poemas. O leitor, apesar do trabalho denodado de Baudelaire, ignora realmente o que disse o poeta em alguns versos. Após sua morte, as primeiras provas corrigidas por sua mão infatigável foram levadas a leilão público. Foram vendidas por 40 mil francos, valor que ele não ganhou em toda a sua vida.

(ARRUFAT, Antón. De Las Pequeñas Cosas. Valencia: Editorial Pre-Textos, 1997, p. 142-143)

Provas corrigidas de Flores do mal (1857) com diversas anotações de Baudelaire

Em dezembro de 1856, quando seu relacionamento com Michel Lévy, o editor de suas traduções de Poe, estava passando por um período difícil, Baudelaire repentinamente recorreu a Auguste Poulet-Malassis, um jovem publicador de Alençon, na Normandia. O poeta confiou ao seu futuro amigo a tarefa de imprimir e publicar um livro de poesias, em sua maior parte composto por textos reunidos durante os últimos cinco anos, e que, até então, só haviam aparecido em periódicos. Poulet-Malassis tinha a reputação de ser um editor honesto e também – o que seria o fator decisivo – um tipógrafo de categoria. A intenção era montar um livro, insistia Baudelaire, “uma obra de material bom, apesar de escasso, que parecesse substancial e fosse bem apresentado”. Uma vez que o manuscrito, preparado por um copista, tinha desaparecido, juntamente com quase todo o conjunto de provas tipográficas corrigidas, que provavelmente estavam manchadas demais para serem mantidas, essas provas de prelo são, hoje, o único documento que nos permite reconstruir a gênese de As flores do mal, da remoção da primeira dedicatória a Théophile Gautier, em 8 de março de 1857, até as últimas correções, realizadas na segunda metade de maio. Entre idas e vindas entre Alençon e Paris, elas comprovam o cuidado atento do autor para com a ortografia (moderadamente tradicional), a pontuação (de acordo com o significado, mas também com a “declamação”) e o layout. Elas registram as perguntas e os pedidos de Poulet-Malassis (raivosamente rabiscadas por Baudelaire) para corrigir e devolver rapidamente as últimas provas tipográficas. Além disso, as anotações do poeta e algumas recomendações são evidência de sua tensão nesse período crucial e da ansiedade que o tornava indiferente com relação à exasperação do editor que ele tinha escolhido, como ele o lembrava, porque ambos compartilhavam da ideia de que “em qualquer tipo de publicação, nada mais é admissível a não ser a perfeição”.

(THE EUROPEAN LIBRARY. Corrected page proofs of Les Fleurs du mal. 6 mar. 2014. Disponível em:
 <http://www.theeuropeanlibrary.org/tel4/record/1000093325392>. Acesso em: 2 abr. 2015).

domingo, 5 de abril de 2015

Mulder & Scully = Holmes & Watson

Cenas do episódio Fogo (1ª temporada, 1993). Legendas em português da Netflix

O relacionamento entre Mulder e Scully, agentes do FBI protagonistas da série Arquivo X, é inspirado na relação entre os personagens de Sir Arthur Conan Doyle — Sherlock Holmes e John Watson, respectivamente. E ambos, Mulder e Scully, estão completamente cientes dessa semelhança. Em Fire (11º episódio da 1ª temporada, dezembro de 1993), Scully diz: So, Sherlock, is the game afoot?. E Mulder responde: I’m afraid so, Watson. A expressão vem do conto A granja da abadia (The Abbey Grange, 1904), em que Holmes diz: Come Watson, come! The game is afoot!.[1] Scully tem toda a razão: Mulder é Holmes. Ele até parece Holmes: bem-vestido, alto, magro e lânguido. Mulder também gosta de deitar e descansar assistindo à TV, assim como Holmes descansa ouvindo música; e ambos são inteiramente brilhantes (Mulder, de fato, tem uma memória fotográfica). O cenário de Arquivo X também é muito holmesiano, um aspecto criado pelo produtor da série, Rob Bowman: Por causa do nevoeiro, das condições nubladas durante a maior parte do tempo e da chuva, Arquivo X manteve um pouco de Sherlock Holmes [...].
"Come Watson, come! The game is afoot! Not a word!
Into your clothes and come!" (Ilustração de Sidney Paget, 1904)

Scully também está certa de que ela interpreta o Watson para o Holmes de Mulder. Ela também é médica, assim como Watson. Seu papel como médica é significativo, porque os médicos são detetives, também, de alguma forma; leem sintomas do paciente e detectam a causa, por vezes, uma doença, ou às vezes um crime. Scully também está  como ela corretamente observa — quase sempre dois passos atrás de Mulder, assim como Watson em relação a Holmes. O que eu estou pensando, Mulder, diz Scully, é a forma como isso me soa familiar. Interpretando Watson para o seu Sherlock. Você me exibindo pistas, uma a uma. É um jogo... e, como de costume, você está escondendo alguma coisa de mim. Você não está me dizendo alguma coisa sobre este caso (Fight Club, 20º episódio da 7ª temporada). Scully pode seguir Mulder, porque ela é uma detetive — está simplesmente muito mais próxima da sólida evidência empírica.
Cenas de Clube da Luta (7ª temporada, 2000)
Enquanto a mente de Mulder já andou passos à frente para uma conclusão quase sempre bizarra (‘ele é um vampiro, ou um monstro, ou um demônio, ou um alienígena’), Scully, por outro lado, pensa como nós; e nós, os espectadores, somos destinados a nos identificar com sua personagem, assim como nos identificamos com Watson. E, assim como nós aprendemos sobre o gênio de Holmes por meio das perguntas de Watson, Scully faz as nossas perguntas, e Mulder fornece as respostas brilhantes.”

(Extraído de SKOBLE, Aeon J.; SANDERS, Steven M. Philosophy of TV Noir. Lexington: University Press of Kentucky, 2008)

Vale observar o que declarou certa vez o criador da série, Chris Carter: “Eu não era um grande fã de ficção científica. Todavia, eu amava Júlio Verne e Sherlock Holmes. Ambos entraram em jogo em Arquivo X”.






[1] De acordo com Leslie Klinger, um dos maiores especialistas do mundo em Sherlock Holmes, “valendo-se de seu conhecimento de Shakespeare (adquirido, sugerem alguns, no curso de sua breve carreira de ator), Holmes parafraseia Henrique IV, parte I, Ato I, Cena 3: ‘Before the game is a-foot’ (literalmente: ‘Antes que a caça seja levantada’) e Henrique V, ato III, Cena 1: ‘The game is afoot!’. Apesar da identificação pública da expressão com Holmes, não há registro de que ele a tenha usado em outro contexto; o próprio Watson usa a expressão uma vez no conto Vila Glicínia (1908). Ela, é portanto, um grau mais respeitável que o popular ‘Elementar, meu caro Watson’, que não aparece em nenhum lugar do Cânone”. Em outras traduções publicadas em português, temos “o jogo está em andamento”; “o jogo começou” etc. A série Sherlock, da BBC, atualizou a fala de Holmes para “The game is on”.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Copidesque: o idiota da objetividade

Nelson Rodrigues (1912–1980)


“[...] o Diário Carioca mudara-se da praça Tiradentes e construíra ali, na Presidente Vargas, a sua sede própria. Em sua casa nova, iria promover uma revolução na imprensa brasileira, adotando a técnica americana de uniformizar os textos e implantando a novidade do copy-desk — o redator encarregado de escoimar as matérias de verbos como, por exemplo, escoimar. Ninguém mais podia ser literato na redação, a não ser em textos assinados, e olhe lá. As reportagens do Diário Carioca tinham de ser objetivas e, logo nas primeiras linhas, dizer quem, quando, onde, por que e como o homem mordera o cachorro. Se fosse o contrário (mesmo que atendidas as exigências do o que, quem, quando, onde, por que e como), não interessava. Isso chamava-se lead — no fundo, um simples qui, quae, quod com Ph.D. em Chicago.

A revolução do lead e do copy-desk fora implantada no Diário Carioca por Danton Jobim, diretor do jornal, e Pompeu de Souza, redator-chefe, e ameaçava espalhar-se pelos outros jornais. Danton era um velho amigo de Nelson desde A Manhã e Crítica; e Pompeu, ainda seu comparsa de garçonnière. Isso não impediu Nelson de reagir contra a instituição do copy-desk. A busca da ‘objetividade’ significava a eliminação de qualquer bijuteria verbal, de qualquer supérfluo, entre os quais os pontos de exclamação das manchetes — como se o jornal não tivesse nada a ver com a notícia. Suponha que o mundo acabasse. O Diário Carioca teria de dar essa manchete sem um mínimo de paixão. Nelson, passional como uma viúva italiana, achava aquilo um empobrecimento da notícia e passou a considerar os copy-desks os ‘idiotas da objetividade’.

‘Se o copy-desk já existisse naquele tempo’, dizia, ‘os Dez Mandamentos teriam sido reduzidos a cinco.’

Nelson admitia que a imprensa do passado — a imprensa de seu pai — cometia excessos. (Certas manchetes antigas tinham três pontos de exclamação!) Mas esfriar a notícia daquele jeito, como queriam os copy-desks, pressupunha que os leitores tivessem uma alma de mármore, o que não era verdade.

[...] Quase todos os primeiros copy-desks eram amigos de Nelson, o que tornava suas provocações ainda mais saborosas. Um deles, Moacyr Werneck de Castro, fingiu suspirar fundo e admitiu para Nelson: ‘Eu sou um ‘idiota da objetividade’.”

(CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 230-231.)

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Um retrato do revisor no Brasil da década de 1920



Um revisor não se improvisa, nem se forma com doses de conhecimentos scientificos e literarios; é necessário ter consciência do que vae emendar, calma suficiente para analysar o que estiver errado, fora de concordância, ou de duvida; marcando, com os signaes especiaes usados, á margem das provas, com clareza e precisão, para serem compreendidos pelos typographos.

Uma bôa parte dos que se empregam neste mistér são os estudantes e funccionarios públicos, os quaes, contando com suas mesadas ou ordenados, pouco interesse tomam (com raras excepções) por esse estafante serviço; não precisam mais que uma fumaça de ilustração e o conhecimento de alguns signaes empregados na revisão de provas.

Em a minha longa pratica de imprensa tenho visto entrarem, apresentados pelos responsáveis de empresas jornalísticas, com as phrases da etiqueta:

O Sr. F..., acadêmico; vem trabalhar aqui na revisão.

Este moço, acanhado a principio, nem sabe o que se faz para rever uma prova, nunca transpoz os humbraes de uma officina; tudo o surprehende; senta-se, toma de uma prova, começa a mirar os hieroglyphos postos á margem... e, complacente, o collega entrega-lhe um original para que ele o acompanhe na leitura; depois palestra com o companheiro e... em tres tempos está feito revisor, sem ter passado a vista num compendio de Arte Typographica.

Outros há, porém, que levam a cousa mais a serio: são os que tiram dessa ingrata profissão os meios de subsistencia.

Mas... são tão mal remunerados os revisores, que não vale critical-os. Entretanto, é tão delicada a sua função entre o industrial e o escriptor! Cada qual responsabiliza-o pelos fracassos e pelos erros contidos numa obra exposta á publicidade.

[...]

Um bom revisor deve ser um homem ilustrado, conhecedor das diferentes orthographias, das actividades humanas, das sciencias, da literatura, das regras de sports, das artes em geral e das operações, para poder se eximir da critica e das responsabilidades.

[...]

Nos tempos modernos, nos nossos dias, o revisor é quase um anonymo no trabalho de uma imprensa, escondido, muita vez, no canto escuro da sala, a desenhar signaes á margem das provas, é o bode expiatório de todas as culpas. Nenhum autor o cita, nem faz menção destes humildes collaboradores. Se o livro sahe perfeito, todo o aplauso é para o editor ou para a empresa, mas se houve descuido, errata ou galhas, é a revisão quem paga.

Autores descuidosos desculpam-se das faltas grammaticaes com o celebre erro de revisão; os legisladores, com a chapa, em nota, no fim da pagina: reproduzido por ter sahido com incorreções; ou aliás, para salvar aparências: este discurso não foi revisto pelo orador. Na verdade é que ninguém quer ser o culpado, só o revisor é o unico responsável; para elle todo o castigo é pouco... mesmo aquelle que, na China mandava cortar a cabeça do revisor.


(FONSECA, Arthur Arezio. Revisão de provas typographicas. Salvador: Imprensa Official, 1925)

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Biobibliografia



É o outono do patriarca, mas ninguém escreve ao coronel, que conheceu o amor nos tempos do cólera, mas viveu cem anos de solidão. Por isso, em má hora, ele tomou o veneno da madrugada, como na crônica de uma morte anunciada. Agora, todos seguem para o enterro do diabo: ele, um senhor muito velho com umas asas enormes, embarcou na última viagem do navio fantasma, levando consigo apenas a memória de suas putas tristes.

domingo, 13 de abril de 2014

O dedo médio em riste na literatura latina

Il dito, escultura de Maurizio Cattelan, em Milão, Itália.


[...] O aspecto mais surpreendente é que certos gestos significam a mesma ideia, materializam o mesmo pensamento, nas regiões mais distantes e diversas do mundo. A linguagem não conseguiu esta universalidade. [...] O dedo malévolo é o médio. Pérsio, poeta satírico da Roma Antiga, o denomina infami digito (Sátira, II, v. 33). Era o dedo com que as feiticeiras misturavam as essências mágicas. Mox turbatum sputo pulverem medio sustulit digito, descreve o prosador Petrônio em Satyricon. Com poeira e saliva, a velha romana fez o unguento que passou na testa do herói pretoniano, usando o dedo médio. Significa o membro viril.


O poeta latino Marco Valério Marcial, em epigrama contra Sextilo, cita o gesto deste, mostrando-lhe o dedo médio como resposta às suas malícias: digitum porrigito medium. Em epigrama dedicado a Marciano, lembra que este zombava com o dedo impudico, signo obsceno: ostendit digitum, sed impudicum.


Anterior a todos esses era Plauto, o dramaturgo. Na comédia Pseudolus, há uma cena típica do costume. Quando Hárpax procura Bálio, alugador de prostitutas, está com ele Simão. Ouvindo o recado de Hárpax, Simão informa, decisivo: “Ó homem da clâmide, defende-te dessa funesta aventura. Mostra-lhe o dedo! É um prostituidor!”.


O gesto continua contemporâneo.


(CASCUDO, Luís da Câmara. Superstições e costumes. Rio de Janeiro: Antunes & Cia., 1958, com adaptações)