Something strange happened here, that's for sure,
but I can't find enough evidence to venture a guess.
(“Manitou”, Dennis Holt)
Em princípios de 2001, quando me mudei para a Asa Norte, passei a ter como vizinha, no apartamento de cima, uma idosa agitada e desmemoriada, de olhar perdido, que parecia viver mais noutro mundo do que neste. Era ocasionalmente visitada pela filha, que, segundo o zelador, já havia perdido por completo a paciência de lidar diariamente com a mãe, dotada duma inquietação incessante. Passou então o fardo das perturbações a uma acompanhante, uma balzaquiana mal-encarada, que cuidava dela em tempo integral.
Por razões que só a caducidade pode explicar, de vez em quando a vizinha de cima costumava jogar, da janela de seu quarto (que ficava exatamente sobre o meu), várias coisas — velas, fotos de pessoas, plantas, raízes, papéis escritos com garranchos ilegíveis, bijuterias, pedras cristalinas etc. —, algumas das quais às vezes resvalava ou batia no vidro da minha janela, quando não caía diretamente lá no térreo. Demorei a entender o que acontecia até ser esclarecido pelo zelador, que era tentado a colecionar quase tudo o que vinha daquela janela do 3º e último andar.
Vivia a velhinha numa alienação de dar dó. Sempre que a porta do seu apartamento era deixada aberta, fugia sorrateiramente e circulava pelos arredores do bloco ou pelo seu interior, chegando às vezes até a tentar entrar em outro domicílio, crente que fosse o seu. Tanto que, por várias vezes que eu estava prestes a entrar ou sair de casa, era surpreendido por suas tentativas de invasão, ocasiões em que insistia, indignada: "Ei, me deixa entrar!...". Até que a cuidadora ranzinza aparecesse, era preciso muita paciência e compaixão.
Todavia, tais ataques de decrepitude eram o que menos me incomodava. Pelo menos uma vez por semana, nas madrugadas, ouviam-se estranhos arrastos de móveis e ruídos de riscados feitos com algum objeto sobre o chão sobre o teto do meu quarto. Eu os ouvia por estar ainda acordado, ou acordava ouvindo os sons. E digo "estranhos" justamente porque não faziam sentido algum: as coisas iam e voltavam sem parar, em movimentos ora ordenados, ora caóticos. Quando não se arrastava nada pelo chão, algo parecia bater ou riscar intensamente tanto o chão quanto as paredes do quarto de cima.
Nunca conversei com sua acompanhante a respeito: primeiro, por falta de proximidade e por achar que de nada adiantaria; segundo, por seu jeito antipático e difícil, cara de poucos amigos. Talvez aquela cuidadora, fria e rabugenta do jeito que era, simplesmente trancasse a senhora no quarto e passasse a noite inteira na sala vendo TV, tentando ignorá-la o quanto fosse possível.
Bem, antes fosse esse o único mistério a me encucar nas horas mortas. Posteriormente, no início de algumas madrugadas, meus estranhamentos tomariam maiores proporções, pois passei a ouvir, oriundas da janela de cima, palavras incógnitas, que não me remetiam a nenhuma língua estrangeira que já tivesse ouvido, pronunciadas de modo intenso e vagaroso por aquela voz decrépita, entoadas com um horror indescritível, capaz de deixar cismado e arrepiado o mais indiferente, cético e insensível dentre aqueles que conheço. Não, não se tratava de fraseado solto de bêbados e tampouco de falas caóticas de doentes mentais. Sei lá em que língua aquilo estava sendo dito, mas soava como um tipo de conjuração ou invocação — e, a julgar pelo tom, com o propósito mais perverso possível. Nesses momentos, criava-se uma atmosfera tão intimidadora nos arredores que até as corujas e outras aves que habitavam a área silenciavam seus cantos norturnos. Agora, parecia-me improvável que tudo aquilo se passasse despercebido por quem estivesse naquela casa; comecei a desconfiar então de que aquela intratável acompanhante, em vez de ignorar, participava de algum modo daquelas atividades ruidosas e esquisitas.
Ao ouvir, altas horas, aquela mensagem enigmática, mas de vibrações claramente negativas, meu frio coração gelava ainda mais, certo de que eventos perturbadores estavam em ação naquele quarto. De qualquer forma, ao meu medo se associava uma enorme curiosidade. Certa noite me enfiei no pequeno bosque situado em frente ao bloco para tentar observar os movimentos daquela casa por suas janelas. Notei que, a partir do momento em que o ritual de estranhosidades costumava se iniciar, todas as lâmpadas da casa estavam sempre apagadas, embora se notasse uma luz instável vinda de dentro do quarto logo acima do meu, certamente oriunda de velas... talvez muitas velas. Não consegui vislumbrar ali nada além de sombras projetadas, mas sentia arrepios toda vez que aquela silhueta senil se debruçava sobre a janela, dando a impressão de que me enxergava ali entre as árvores.
Entretanto, tais vislumbres do quarto sinistro não me intrigavam mais do que aquele palavreado diabólico. Rapidamente tive a ideia de gravar a voz a fim de submetê-la à apreciação de um distante contato ucraniano, linguista de formação e modesto hiperpoliglota, que eu havia conhecido por meio de um grupo de esperanto na Internet e que despertaria meu interesse em cursar Letras na universidade. Nunca interagi muito com esperantistas de outros países, por não ter sequer concluído o nível básico da língua artificial; mas Andreiv conversava muito bem em tudo quanto era língua. Não conhecia mais ninguém tão capaz de identificar e decifrar aquele horror verbal.
Enviei-lhe por e-mail a gravação num formato de arquivo de áudio, dizendo não haver urgência e que ele poderia levar todo o tempo necessário para me dar uma resposta. Andreiv logo acusou o recebimento da mensagem e não demorou mais do que uma semana para me dar um retorno. Eis a mensagem, num português formidável para um estrangeiro e com alguns usos em esperanto:
----- Mensagem original ----
De: Andreiv H. <andreiv...@mail.lviv.ua>
Para: mim
Enviada: Sábado, 3 de agosto de 2001 21:07:17
Assunto: Re: Arquivo de áudio (língua desconhecida)
Kara amiko Davido,
Fiquei muito entusiasmado e curioso com a gravação que você me enviou. Confesso que não houve um único dia, desde que a recebi e a ouvi, que eu não lhe dedicasse ao menos algumas horas analisando o seu achado. À parte os aspectos perturbadores da voz, já lhe adianto que, de fato, seus palpites não estavam equivocados e sua intuição não o enganou: não se trata de balbucios aleatórios. Há estrutura, ordem, conexão e combinação de terminações e de sons. Notei traços bem peculiares, normalmente não encontrados em outras formas de expressão oral.
De início, até especulei a possibilidade de estarmos diante de algum falar arcaico – preservado sabe-se lá como e por quê – de algum idioma conhecido. Mas não consegui perceber nenhuma proximidade, nenhuma ligação genética entre essa linguagem e qualquer outra já identificada. É diferente de qualquer língua ou dialeto que eu já tenha conhecido, ainda que superficialmente. Não consegui ver parentescos, e arriscaria dizer que, de onde quer que isso tenha se originado, não pertence a nenhuma família ou tronco linguístico já documentados.
Tudo o que posso lhe afirmar, até o momento, é que provavelmente tivemos o privilégio de encontrar uma língua isolada, sem parentesco com qualquer outra conhecida, o que não seria nenhum absurdo, considerando ser esse também o caso de vários idiomas indígenas da Amazônia, como o trumai e o pirahã. Mas reconheço que é algo, no mínimo, curiosíssimo, e isso sem considerar a circunstância um tanto assustadora por meio da qual você a gravou.
Está sendo sem dúvida uma oportunidade fascinante de investigação, já que você tem dificuldade de questionar isso pessoalmente. Continuemos pesquisando. Não desistirei desse achado. Caso ouça outras falas, não hesite em me enviar.
Kore kaj amike,
Andreiv H.
----- Fim da Mensagem ----
Frustrado e ao mesmo tempo intrigado com o resultado, gravei e enviei mais algumas vezes aqueles dizeres insondáveis, mas sem retornos esclarecedores, o que me fazia sentir mais pena do prestativo e dedicado linguista do que insatisfação. Todas aquelas bizarrices seriam testemunhadas com regularidade semanal, e eu jamais me acostumaria a elas. Em momentos assim, só me restava então fechar a janela e tentar dormir... algumas vezes, o mais distante que podia: na sala.
Paralelamente a isso, eu começava a estranhar o fato de não mais encontrar pessoalmente a velhinha, nem pelos corredores, nem pelos arredores do bloco. Talvez sua saúde tivesse piorado a ponto de limitar sua locomoção, embora continuasse em intensa e obscura atividade dentro de seu quarto. Curiosíssimo, aproveitei ter me esbarrado com o zelador para puxar conversa, perguntando se ele sabia alguma coisa sobre a senhora que eu já não via há muito tempo. E o que ele me respondeu a seguir será para sempre lembrado por mim com muito assombro:
“Mas rapaiz, cê num ficou sabendo, não? A veinha do 308 faleceu faz tempo, moço... cê num notô que parô de cair as coisa lá de cima? Então... A filha ficou de alugar, mas té agora nada... té apareceu gente interessada aí, mas, depois de ver, ninguém quis alugar...”
Esbocei expressão de leve surpresa, enquanto por dentro estava apavorado com o que tinha acabado de ouvir. E me retirei pensando no quanto aqueles fatos mostravam-se, agora, mais inexplicáveis e sinistros do que já eram.
Os ruídos de arrastos e de riscos no chão sobre o meu teto.
Os resvalos e as batidas de objetos em minha janela.
Todas aquelas palavras indecifráveis pronunciadas por aquela voz decrépita.
Há quanto tempo eu vinha testemunhando tudo isso desde que ela faleceu?
A partir daquele dia, passei a dormir somente na sala e rezei para não mais presenciar o evento semanal — cuja natureza eu agora sabia ser exclusivamente fantasmagórica — até alugar outro apartamento, o que não levou mais que alguns dias. À exceção das lembranças, eu podia ou queria acreditar que tudo aquilo havia ficado para trás. Posteriormente, ao passar rapidamente pelo bloco e questionar o zelador, fui informado de que o apartamento da falecida nunca fora alugado até então.
Quanto ao Andreiv, o tempo fez com que perdêssemos contato. Minha última mensagem foi respondida automaticamente, informando inexistência daquele endereço de e-mail. Teria se aprofundado a ponto de ter feito algum avanço a respeito do assunto? Talvez jamais saiba, pois, ao entrar em contato com aquele antigo círculo virtual de esperantistas, o qual ele também não mais frequentava, disseram-me que a última notícia que tinham era de que ele havia interrompido suas atividades profissionais e se recolhido em lar de parentes após ser acometido de perturbadoras alucinações auditivas. Naquela hora, passou-me uma horrível possibilidade pela cabeça. Estaria isso relacionado à demasiada atenção que ele deu àquelas invocações? Teria eu então me livrado de destino semelhante ao me retirar daquela casa, interrompendo o convívio com aquela terrível audição? Senti-me durante algum tempo condenado a conviver com essa culpa, embora não comprovada. O fato é que excluí do computador e do e-mail todos aqueles horríveis áudios gravados, dando o assunto por encerrado e nada mais especulando. Dei graças aos céus por nunca mais ter escutado nada à noite e desapeguei-me completamente das dúvidas que alimentara durante muito tempo. Hoje distante, no tempo e no espaço de tudo aquilo, consigo apenas admitir com serenidade que, naquelas noites passadas em claro, eu ouvia a voz que vinha do quarto vazio.